Garrafa (Waly Salomão)

Vá dizer aos camaradas
Que fui para o alto-mar
E que minha barca naufraga.


Leme partido.
Casco arrombado.
Sem farol afunda
Nas pedras dos arrecifes.


Bandeira aos farrapos. Nenhuma estrela-guia
Célere desce lá do céu para minha companhia.
Destroços: proa, velame, quilha,
prancha, rede-de-pescar, arpão,
bússola, astrolábio, boia, sonar...


Que fui para o alto-mar
E que Medina e Meca já não significam
mais nada para mim.
Entrevado
Vista Turva
Porto nenhum avisto
Nas trevas da cerração.


Pelejo entre os vagalhões e as rocas,
Não apuro os nós de lonjuras das seguras docas
Tampouco os altos e baixos relevos das pedras
que roncam ais
no quebra-mar do cais
Ou dos tapetes de mijo e de restos de peixes
E patas de caranguejos e frutas podres
Tecidos pelas alpercatas e os pés nus sobre a rampa
do Mercado-Modelo.


Um marinheiro conserta sua embarcação
- corpo de intempestiva casa -
Em pleno alto-mar aberto
Vá dizer aos meus amigos.




SALOMÃO, Waly. Tarifa de embarque. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

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