FREVO E FLAMENCO (João Cabral de Melo Neto)
Viver não vale dormir,
viver é estar acordado,
há tempo para dormir
quando o grande sono for dado.
Viver é estar acordado
viver é ver-se vivendo:
não é o embalo de sonho,
é o despertador do flamenco;
O despertar do frevo
Com seus metais de doer
Que não nos deixa dormir
Faz nosso viver mais viver.
Viver não é um dedal,
muito menos a pomada,
viver é em frevo e flamenco
que deixa a pele esfolada,
uma vida não sei de onde
como maré que invadiu
foi de fora, foi de dentro
aquele invadir de vazio?
Não sei se cheia ou secura
não sei se era muito ou pouco
sei que invadiu por todo o corpo.
Seria o fígado, o intestino,
seria essa coisa ou aquela?
Por que então subiu tão alto
e me invadiu a cabeça?
Decerto dentro de meu viver
alguma coisa escondida
rebenta por só rebentar
sem ameaçar-me a vida.
E o prazer me aprisiona
e mal ou bem faz sua rotina,
máquinas gastas de muito,
mas capazes de disciplina.
Não sei: um vazio pleno
me toma de assalto súbito.
É Deus o Diabo para lembrar
que já sabe meu dia último.
viver é estar acordado,
há tempo para dormir
quando o grande sono for dado.
viver é ver-se vivendo:
não é o embalo de sonho,
é o despertador do flamenco;
Com seus metais de doer
Que não nos deixa dormir
Faz nosso viver mais viver.
muito menos a pomada,
viver é em frevo e flamenco
que deixa a pele esfolada,
como maré que invadiu
foi de fora, foi de dentro
aquele invadir de vazio?
não sei se era muito ou pouco
sei que invadiu por todo o corpo.
seria essa coisa ou aquela?
Por que então subiu tão alto
e me invadiu a cabeça?
alguma coisa escondida
rebenta por só rebentar
sem ameaçar-me a vida.
e mal ou bem faz sua rotina,
máquinas gastas de muito,
mas capazes de disciplina.
me toma de assalto súbito.
É Deus o Diabo para lembrar
que já sabe meu dia último.
NETO, João Cabral de Melo. Poesia completa. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2020.